A disseminação da harmonização facial tem movimentado um mercado paralelo no setor da estética. Em grupos de WhatsApp, a venda de botox, nome popular dado às toxinas injetáveis e suas variações, se assemelha a uma feira clandestina. No mercado legal, duas ampolas de Xeomin (o botox do laboratório Merz) custam aproximadamente R$ 956, enquanto nos grupos ilegais, sem procedência garantida, o preço despenca para R$ 500.
O g1 encontrou, nas redes sociais, profissionais da saúde que atuam como influenciadores, recomendando ou vendendo toxinas injetáveis. No entanto, a comercialização desses produtos é restrita a farmacêuticas e a distribuidores autorizados pela Anvisa, tornando ilegal a revenda por meio de WhatsApp e Instagram.
Uma fonte do g1, que ocupa posição de destaque em um dos sete laboratórios que produzem toxinas injetáveis no Brasil e pediu para ter a identidade preservada, destaca: “Todo mundo sabe [dessas vendas irregulares], mas não fala porque tem medo. É um esquema que movimenta milhões no paralelo”.
Em uma investigação que durou três meses, o g1 acompanhou grupos de WhatsApp, conversou com seis fontes que preferiram manter o anonimato por medo de represálias e identificou crimes contra a saúde pública e a Receita Federal. Os envolvidos podem enfrentar penas que variam de 3 a 15 anos de reclusão por crimes como contrabando e formação de quadrilha. A Polícia Civil de São Paulo já está investigando o comércio irregular.
O g1 destaca que não participou de nenhuma negociação nem adquiriu produtos nos grupos investigados, e reforça a proibição da venda direta ao consumidor.
Há sete farmacêuticas autorizadas a comercializar toxinas injetáveis no Brasil por meio de distribuidores liberados pela Anvisa ou diretamente a profissionais da saúde: Dysport (Galderma), Botox (Allergan), Xeomin (Merz), Botulim (Blau), Botulift (Dermadream), Prosigne (Cristália) e Nabota (Rennova).
Não existem revendedores oficiais dessas marcas que atuem em redes sociais ou grupos de WhatsApp. As sete farmacêuticas responderam os questionamentos do g1 e reafirmaram que as vendas descritas nesta reportagem são proibidas (leia mais abaixo).
A qualidade e a procedência da substância que será injetada é o que mais preocupa os dermatologistas. Há relatos de misturas com toxinas proibidas importadas de Israel, por exemplo.
O dermatologista Sergio Palma, que já foi presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia, diz que é comum receber paciente informando que fez um procedimento muito barato e agora precisa de correção. “A gente sabe que [o valor] é incompatível para aquele produto. Então são produtos que não são o que informam para os pacientes.”
Palma faz um alerta: “Não existe procedimento estético minimamente invasivo quando a gente fala de possibilidades de risco. Qualquer procedimento estético tem também possibilidade de alguma complicação”.
“É nosso dever como médico informar sobre aquele procedimento, o que esperar, até as complicações. Cada vez mais a gente tem encontrado nos nossos consultórios pacientes que chegam para corrigir problemas que acontecem por preenchedores ou por toxina botulínica mal aplicada”, afirma.
A Meta, dona do Instagram e do WhatsApp, informou, por meio de nota, que proíbe a venda de drogas em suas plataformas, “sejam elas não medicinais ou medicamentos, e removemos esse tipo de conteúdo assim que o identificamos”.
Além de queixos, bocas e bochechas
No Instagram, o g1 acompanhou 11 perfis que oferecem toxinas injetáveis. No período, muitos mudaram o nome que usam na rede, mas os CNPJs permanecem os mesmos.
Um deles é o MedHof/ProdutosHofBrasil, que chegou a sair do ar após denúncias, mas continua com um perfil no Instagram que direciona para um contato no WhatsApp. Até exibia telefone e CNPJ no perfil para transmitir credibilidade, mas o seu CNPJ está suspenso na Junta Comercial e aparece sob investigação no site do órgão regulador, a Anvisa.
Nos destaques de um dos perfis, profissionais de saúde apareciam até julho como clientes satisfeitos. São biomédicos, médicos, dentistas e esteticistas. “Recebidos da semana”, comemora uma profissional. “Meu queridinho chegou”, escreve outra, com uma caixa de Rennova Lift, uma marca de toxina injetável. Num vídeo que exibe notas fiscais de farmacêuticas, o revendedor ilegal garante que “compra direto da fonte” e, por isso, seus preços são baixos.
“O que está acontecendo é que profissionais de saúde compram nas farmacêuticas uma grande quantidade, ganham um desconto enorme e revendem para pequenos ‘cambistas’ que atuam como falsos distribuidores de injetáveis”, aponta um dos entrevistados.
O g1 apurou que as farmacêuticas não limitam a quantidade de produtos vendidos, seja para um distribuidor ou um profissional da saúde, e oferecem descontos escalonados.
A MedHof/ProdutosHofBrasil e perfis semelhantes direcionam os interessados para o WhatsApp, onde ocorrem as transações. Durante as conversas, o interlocutor se dirige a qualquer um como “doutor” ou “doutora”. A investigação do g1 identificou irregularidades, como a não emissão de nota fiscal e a embalagem de um produto que tinha texto em outro idioma.
Procurada, a Anvisa respondeu que “a regulamentação no Brasil exige que a embalagem dos medicamentos seja comercializada com texto em língua portuguesa”.
De acordo com o site da agência reguladora, a Medhof/ProdutosHofBrasil não está autorizada a distribuir nem a comercializar o produto. O CNPJ da empresa está sob investigação após uma denúncia de comercialização de medicamentos em desacordo com os artigos 2, 50 e 59 da Lei 6.360/1976.
O que diz a Anvisa
“A venda de medicamentos ao cidadão comum só é permitida em farmácias devidamente regularizadas. As distribuidoras de medicamentos devidamente autorizadas junto à Vigilância Sanitária fazem a intermediação entre fabricantes de medicamentos e farmácias, hospitais etc. Não é permitida a venda de medicamentos por plataformas de comunicação como o WhatsApp ou redes sociais ou por pessoas físicas. A venda irregular de medicamentos deve ser fiscalizada pelas autoridades locais, tanto da esfera sanitária como das autoridades policiais.
É possível registrar denúncias à Anvisa, por meio dos canais informados ou na Central de Atendimento da Anvisa. O cidadão também pode sempre procurar a Vigilância Sanitária mais próxima do local de ocorrência, responsável pela fiscalização in loco.”